A escola especial e o retrocesso na educação brasileira | Inclusão na Escola
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A escola especial e o retrocesso na educação brasileira

Inclusão na Escola - A escola especial e o retrocesso na educação brasileira

A escola especial e o retrocesso na educação brasileira

O Decreto n. 10.502, de 30 de setembro de 2020, que institui a nova Política Nacional de Educação Especial, gerou muita tensão e muito desconforto em todos nós que acreditamos na educação inclusiva, por preconizar o retorno das salas especiais e escolas especiais. Trata-se de um retrocesso em relação a todos os esforços por uma educação que contemple e respeite as diferenças.

Trabalhei em escola especial no final dos anos 1980, início dos 90. Naquela época, não era permitido matricular alunos com deficiência na escola regular, então a escola especial era a única opção. Também me lembro da sala especial que agora ressurge no decreto. Era uma sala dentro da escola regular destinada aos alunos com deficiência, usada como ameaça para o grupo de alunos: “Se você não se comportar, vai para a sala dos doidinhos!” – como se doença mental e deficiência intelectual fossem a mesma coisa.

A escola especial era segregação: as pessoas com deficiência, invisíveis, ficavam separadas. A sala especial era integração: os alunos com deficiência estavam na escola, porém não pertenciam, não faziam parte dela.

O que devemos buscar não é nem segregação, nem integração: é inclusão.

Desde a Constituição de 1988, diversos passos foram dados na direção de tornar as alunas e os alunos com deficiência visíveis. Vale citar o artigo 208, a fim de construir nossa compreensão sobre educação inclusiva:

O dever do Estado com a educação será efetivado mediante a garantia de:

I – ensino fundamental obrigatório e gratuito, assegurada, inclusive, sua oferta gratuita para todos os que a ele não tiverem acesso na idade própria;

III – atendimento educacional especializado aos portadores de deficiência, preferencialmente na rede regular de ensino;

VII – atendimento ao educando, no ensino fundamental, através de programas suplementares de material didático-escolar, transporte, alimentação e assistência à saúde.

Fonte: BRASIL. Senado Federal. Atividade legislativa. Disponível em: http://www.senado.leg.br/atividade/const/con1988/con1988_04.06.1998/art_208_.asp   Acesso em: 26 out. 2020.

Lembrando que, na hierarquia das leis brasileiras, a Constituição Federal está acima de um decreto presidencial.

Outro marco legal fundamental é a Lei Brasileira de Inclusão da Pessoa com Deficiência (LBI, Lei n. 13.146/2015). Também conhecida como Estatuto da Pessoa com Deficiência, essa lei agrupa direitos relacionados à vida desse grupo de brasileiros, tais como escola, trabalho, acessibilidade, cidadania, saúde e reabilitação. O Capítulo IV refere-se à educação, e seu artigo 27 define:

A educação constitui direito da pessoa com deficiência, assegurados sistema educacional inclusivo em todos os níveis e aprendizado ao longo de toda a vida, de forma a alcançar o máximo desenvolvimento possível de seus talentos e habilidades físicas, sensoriais, intelectuais e sociais, segundo suas características, interesses e necessidades de aprendizagem.

Parágrafo único. É dever do Estado, da família, da comunidade escolar e da sociedade assegurar educação de qualidade à pessoa com deficiência, colocando-a a salvo de toda forma de violência, negligência e discriminação.

Fonte: BRASIL. Presidência da República. Secretaria-Geral. Lei n. 13.146, de 6 de julho de 2015. Disponível em: http://www.planalto.gov.br/CCIVIL_03/_Ato2015-2018/2015/Lei/L13146.htm. Acesso em: 26 out. 2020.

Dando um direcionamento mais claro sobre como incluir os alunos com deficiência na escola regular, a LBI estabelece que: as escolas da rede pública e privada precisam ter o serviço de Atendimento Educacional Especializado (AEE); os professores têm direito a receber formação continuada; e os alunos têm direito a acompanhante terapêutico. E, em seu artigo 8º, caracteriza como crime recusar a matrícula dos alunos com deficiência, trazendo a grande novidade de atribuir responsabilidades às escolas privadas sem que haja cobrança adicional em mensalidades, anuidades e matrículas. 

Infelizmente conto nos dedos de uma mão as escolas da rede privada que se adequaram às determinações da lei. Pouquíssimas oferecem sala de recursos e serviço de AEE, e a grande maioria se diz despreparada para garantir a plena participação dos estudantes com deficiência.

São cinco anos de LBI! Mesmo assim, ela continua no papel. Por que não investir em cumprir a LBI, ao invés de criar escolas especiais?

Em um cenário mundial de esforços empenhados para desenvolver a equidade e o respeito às diferenças, retomar as escolas e salas especiais é, de fato, um retrocesso. O Brasil firmou compromisso com a Agenda 2030, estabelecendo 169 metas para atingir os 17 Objetivos de Desenvolvimento Sustentável, cujo capítulo IV trata da educação de qualidade, inclusiva e equitativa, promotora de oportunidades de aprendizagem ao longo da vida. Voltar com a escola especial é jogar fora o trabalho de tanta gente para dar esses passos de formiga a fim de construir uma escola mais justa para todos.

EDUCAÇÃO INCLUSIVA

Pesquisa realizada em 2016 pelo Instituto Alana aponta os benefícios da educação inclusiva para todos os estudantes, com e sem deficiência. A convivência com alunos com deficiência colabora para o desenvolvimento de habilidades acadêmicas e sociais em alunas e alunos sem deficiência. A análise mostra que pessoas sem deficiência que estudam em salas de aula inclusivas têm opiniões menos preconceituosas e são mais receptivas às diferenças.

A educação inclusiva beneficia todos os alunos! Mas como fazer isso? Parece impossível!

É desafiador, porém não impossível. O primeiro passo na direção de uma boa aula, pensando em todos os alunos, é o planejamento. Wiggins propõe iniciar projetando os resultados esperados e passando à seleção das evidências de que os alunos alcançaram aqueles resultados. Somente depois vem a elaboração de uma experiência de aprendizagem que possibilite alcançar os resultados desejados e a estratégia avaliativa.

O segundo passo é validar se a experiência de aprendizagem contempla todos os alunos e alunas. O Desenho Universal para a Aprendizagem serve como referência para que você se certifique de oferecer diferentes maneiras de apresentar o conteúdo, aceitar que o estudante expresse o que aprendeu de forma variada e usar estratégias diversificadas para promover e manter o engajamento da turma. Assim, haverá maior chance de garantir a aprendizagem de mais alunos.

O terceiro passo é contemplar a especificidade do ou da estudante com deficiência. Para isso, é necessário conhecer o aluno ou aluna, as barreiras que limitam sua participação e os recursos pedagógicos ou de tecnologia assistiva que podem facilitar o acesso.

Vamos contextualizar usando um plano de aula on-line de acordo com a Base Nacional Comum Curricular (BNCC):

Ciências – 2º ano do ensino fundamental

Unidade temática Objeto de conhecimento Habilidades
Matéria e energia Propriedades e usos dos materiais
Prevenção de acidentes domésticos
(EF02CI03) Discutir os cuidados necessários à prevenção de acidentes domésticos (objetos cortantes e inflamáveis, eletricidade, produtos de limpeza, medicamentos etc.).

1º PASSO 

Resultados desejados – Os alunos serão capazes de identificar situações e materiais causadores de acidentes domésticos e reconhecer formas de prevenção.

Evidências de aprendizagem – Os estudantes devem gravar um podcast compilando as descobertas.

Experiência de aprendizagem – O conteúdo será desenvolvido em três aulas, conforme segue. 

Usando a lógica da sala invertida, na aula anterior propor aos alunos que explorem materiais utilizados em casa que podem causas acidentes.

Na primeira aula: 

– Usar alguma ferramenta on-line, como Padlet, Google Forms ou Miro. 

– Produzir um mural colaborativo com as descobertas e ouvir do grupo as justificativas sobre a escolha do objeto. 

– Usar um vídeo sobre acidentes domésticos e prevenção. 

– Ler um texto com curiosidade sobre materiais cortantes.

– Concluir pedindo que os alunos identifiquem situações perigosas, bem como alternativas para preveni-las.

Na segunda aula, aproveitar o painel construído na ferramenta escolhida na primeira aula para dar continuidade ao trabalho, desta vez montando situações perigosas e medidas de prevenção. 

Orientar que os estudantes gravem um podcast contando um acidente doméstico, o que causou o acidente e como poderia ter sido prevenido.

Na terceira aula, ouvir o podcast e conversar sobre o resultado do trabalho.

2º PASSO

Conferir se a experiência de aprendizagem proposta está de acordo com o modelo do Desenho Universal para a Aprendizagem (DUA):

Múltiplas formas de apresentação Múltiplas formas de avaliação Múltiplas formas de engajamento
Exploração do ambiente Vídeo Texto


Pesquisa Participação Produção do painel colaborativo  Gravação do podcast Antecipação da temática com a pesquisa Ferramenta (Padlet, Google Forms, Miro ou outra)

3º PASSO

Vamos imaginar que fazem parte da turma em questão: um aluno com deficiência intelectual não alfabetizado e um autista não verbal e não alfabetizado. Neste terceiro passo, a professora ou o professor deve atender à especificidade dos estudantes com deficiência.  

A exploração do ambiente doméstico contempla a necessidade dos dois estudantes, porém, para construir o painel, eles poderão enviar fotos dos materiais identificados. A participação da família ou cuidador será necessária.

A atividade de gravação do podcast deverá ser flexibilizada para o aluno autista, que poderá gravar um vídeo ou, se ele gostar de desenhar, usar essa habilidade.

Percebe como esses passos tornaram a aula interessante para todos os alunos e contemplou as necessidades específicas daqueles com deficiência?

Mesmo que o decreto não seja revogado e as escolas e salas especiais retornem, a escola vai continuar recebendo alunos com transtornos ou dificuldades de aprendizagem. Sendo assim, a educação inclusiva é a única opção para contemplar e respeitar as diferenças. É uma longa jornada, e ainda estamos no início dela. O destino final – a construção de uma escola que seja, de fato, para todos – é uma utopia, mas, como diz Eduardo Galeano, a utopia serve para que a gente continue a caminhar. 

Sigamos firmes, resistindo à exclusão e à segregação e construindo uma escola de qualidade para todos.

Referências

BERGAMANN, Jonathan. Aprendizagem invertida para resolver o problema do dever de casa. Porto Alegre: Penso, 2018. 

BRASIL. Governo Federal. Transformando nosso mundo: a Agenda 2030 para o Desenvolvimento Sustentável. Disponível em: http://www.itamaraty.gov.br/images/ed_desenvsust/Agenda2030-completo-site.pdf. Acesso em: 29 out. 2020.

INSTITUTO ALANA. Pesquisa aponta os benefícios da educação inclusiva. 5 dez. 2016. Disponível em: https://alana.org.br/pesquisa-aponta-os-beneficios-da-educacao-inclusiva-para-todos/. Acesso em: 29 out. 2020

Lei Brasileira de Inclusão e o “novo” conceito de deficiência: será que agora vai “pegar”? Justificando, 20 ago. 2015. Disponível em: http://www.justificando.com/2015/08/20/lei-brasileira-de-inclusao-e-o-novo-conceito-de-deficiencia-sera-que-agora-vai-pegar/. Acesso em: 29 out. 2020.

WIGGINS, Grant. Planejamento para a compreensão: alinhando currículo, avaliação e ensino por meio do planejamento reverso. Porto Alegre: Penso, 2019.

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